terça-feira, 29 de junho de 2010

Para Deleite

Jardim

           Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos "conhecimento de palavras e ignorância da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa única palavra: Jardim! Jardim é a imagem de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado dizer uma última palavra, uma única palavra, Jardim seria a palavra que eu diria."
           Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.
      O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.
          Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.
         Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.
        Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!
        Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...
        Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim. Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece em meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico, eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a esperança do Paraíso se perdeu. Pois, como o disse o místico medieval Angelus Silésius:



         Se, no teu centro

         um Paraíso não puderes encontrar,

         não existe chance alguma de, algum dia,

         nele entrar.

         Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:

         "No mistério do Sem-Fim,

         equilibra-se um planeta.

         E, no planeta, um jardim,

         e, no jardim, um canteiro:

         no canteiro, urna violeta,

         e, sobre ela, o dia inteiro,

         entre o planeta e o Sem-Fim,

         a asa de urna borboleta."

        Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard: "O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso." (O retorno eterno, p 65).
Rubem Alves

Os desafios da leitura



         Tudo o que lemos é apurado pelos editores que escolhem o que publicar em função do mercado. Dessa forma, o texto que chega às nossas mãos já é fruto de um recorte e de uma seleção.

         Ler e escrever são ações que se inserem num processo cultural. A leitura é produção de sentido. O texto produto de um trabalho anterior. O leitor é o desafiador da leitura do texto do autor.

         Ler não é revelar, repetir sentidos dados como acabados, é construir uma cadeia de sentido,tomando como ponto de partida os índices do texto dado.

        Ler, do latim, legere, numa primeira instância significava contar, enumerar letras; em seguida, significava colher e, por último roubar.

        Ler é uma ação interativa. A leitura funcional ou operacional é a que se faz em busca do conhecimento nos livros didáticos, nas enciclopédias, etc.

       Aluno e professor precisam recorrer à leitura como meio de conhecimento. Dessa forma, ela não é de responsabilidade apenas do professor de língua portuguesa. A leitura funcional está mais engajada ao conhecimento e deve, portanto ser planejada de forma didática. Ela é um instrumento importante para a aquisição da leitura, mas, todavia de caráter técnico.

      A leitura formativa ou de opinião é, conforme Graça Paulino, a que deseja, por exemplo , o texto jornalístico, principalmente o editorial. Seria a leitura obediente ao texto de opinião. Esse tipo de texto pretende convencer o leitor. Mesmo a mais objetiva notícia de jornal traz em si uma ideologia, que cabe ao leitor desvendar. Para isso é necessário recorrer à leitura crítica.

      A leitura crítica busca a formação de opinião do leitor, conduzindo-o à análise e, posteriormente à reflexão de aceitabilidade ou não do que se lê.

      A leitura crítica gera outra forma de interdisciplinaridade, além de fazer cumprir a meta de se desenvolver a leitura funcional.

      A leitura literária é ato da leitura como aquisição de desejo. Cada um projeta no texto lido seus anseios, seus desejos, suas angústias e pulsões.

      É necessário também refletir sobre a postura corporal cobrada pela escola, sobretudo, no momento da leitura: o movimento dos olhos, a ausência do movimento dos lábios, a repressão do movimento de seguir a linha com o dedo, etc. O domínio da leitura começa aí, na restrição dos movimentos corporais. Em casa, lemos deitados ou sentados de pernas para o ar, rimos ou choramos durante a leitura, manifestando nossas emoções, nossos sentimentos.

     Ler é também preencher lacunas, estabelecer relações, fazer perguntas. O texto é fruto de uma produção, do preenchimento de um espaço vazio, é pois, produto, mas, no momento em que se abre ao leitor, instaura-se um novo processo: o de leitura enquanto produção.

      A formação do leitor não se dá apenas através da leitura, mas também do conhecimento de onde ela parte, a sua utilidade: para que/ por quem/ para quem / o que é / e quem é... Desta forma sobrepõe ao universo do leitor uma série de novos conceitos sobre a arte, qual ele, aos poucos vai se inserindo, tornando-se capaz de se transformar, também, num grande produtor ou idealizador dela.

Apresentação

             Ler é desvendar o mundo onde há tanto para se descobrir e encontrar. Não haverá nenhum sentido em realizar encontros com a leitura se não ocorrer a leitura do olhar.
             Nesse espaço o que se quer é compartilhar textos (verbais e não-verbais), lançando um olhar crítico sobre as palavras e o mundo que nos cerca; é compreender a leitura sob um novo olhar, fazer transbordar a palavra para enxergar o seu potencial criador e emancipatório.